segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Dez mil coisas

Bom,

Faz tempo que eu não atualizo a minha Intersemiose na Grande Rede.
Recomeço com trechos do Tao te ching (vale a pena seguir a sequencia...):

(Cap.1)

O Tao de que se pode falar não é o verdadeiro e eterno Tao.
O nome que pode ser dito não é o verdadeiro nome.
O que não tem nome é a origem do Céu e da Terra
E o nomear é a mãe de todas as coisas.

Sem a intenção de o considerar,
Podemos apreender o mistério e as suas subtilezas,
Através da sua ausência de forma.
Tentando considerá-lo, só podemos ver a sua manifestação
Nas formas que definem o limite das coisas.

Ambos provêm da mesma fonte e são o mesmo.
Diferem apenas devido ao aparecimento dos nomes.
São o mistério mais profundo,
a porta para todos os mistérios.

(Cap.40)

As dez mil coisas nascem a partir do que existe (e tem nome)
E o que existe nasce do que não existe (e não tem nome).

(Cap.4)

O Tao é como o espaço vazio dentro de um vaso;
Mas, por mais que o enchamos, nunca ficará cheio.
É imensurável, como se fosse o Antepassado de todas as coisas.

(Cap.41)

Quando um estudioso mais sábio ouve falar no Tao,
Abraça-o com zelo.
Quando um estudioso médio ouve falar no Tao,
Pensa nele de vez em quando.
Quando um estudioso inferior ouve falar no Tao,
Ri-se às gargalhadas.
Se ele não risse
O Tao não seria o Tao (o Caminho).

(Cap.11)

Trinta raios convergem para o meio de uma roda
Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil.
Molda-se o barro para fazer um vaso;
É o espaço dentro dele que o torna útil.
Fazem-se portas e janelas para um quarto;
São os buracos que o tornam útil.

Por isso, a vantagem do que está lá
Assenta exclusivamente
na utilidade do que lá não está.


Sequencia mais-que-interessante.
Bons tempo aqueles em que a medida para a saturação de significantes era "as dez mil coisas".
Dez mil textos sobre um assunto, dez mil usuários em um rede social, dez mil blogs... dez mil é tão pouco na era da informação em rede!
São tantos os tipos de informação, são tantos os seus nomes, suas formas. Fala-se tanto sobre tanta coisa, blags, blags, blags...
Tudo e todos querem existir, querem ser, querem nomear, querem manifestar o seu próprio estilo. Bilhões de vozes reclamam o desejo de sair do misterioso e necessário anonimato. Somos assim mesmo, não pode ser diferente. Será que alguém um dia lerá esse texto? Será que alguém entenderá? Será que alguém irá comentá-lo? Será que as pessoas vão entender sobre o que estou falando? Mas, sobre o que estou falando? Sobre o quê não falar?
Por certo, o silêncio diante das coisas realmente úteis, importantes, fala mais que as dez mil coisas espalhadas pela Grande Rede; e assim deve permanecer.
Espécies animais, vegetais, minerais, ecossistemas inteiros, histórias e culturas humanas inteiras simplesmente tornam-se com o passar dos tempos ausência de forma, seus nomes deixam de ser pronunciados, e assim deve ser.
Todas as formas tem um limite.
A saturação de significantes não tem: sons, vozes, rabiscos, imagens, movimentos, contratempos, silêncio... Fica a pergunta: no princípio era verbo?

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Intersemiose?

Mestre LatUFF, ao escrever o verbete sobre "intersemioticidade" no e-dicionário de termos literários, qualifica o termo:

Em que consiste, afinal, a intersemioticidade? Qual será o alcance desse neologismo erudito, dotado de sonoridade tão sedutora para ouvidos atentos à musicalidade imperdível dos signos orais? Que olhar projeta o olho semiótico?


Grosso modo, podemos dizer com o polêmico poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989) que “aqui muitos/vários códigos interpenetram-se produzindo híbridos que são os mutantes da qualidade nova”; através da intersemiose, cruzam-se “outras linguagens, outros códigos, outros recursos, outros meios” .


Na vasta nomenclatura que procura definir o ser humano - homo faber, homo sapiens, homo pictor, homo symbolicus, homo loquens... -, o homo semioticus e o homo significans surgem como corolário dos avanços da ciência, da industrialização, da tecnologia moderna e pós-moderna, enfim, que não só fragmentaram e pulverizaram o saber como multiplicaram quase ad infinitum os códigos; ao choque cultural, a partir principalmente da segunda metade do século XIX, corresponde a fissão da linguagem, que constitui o ser humano, em sua essência, conforme postulam a filosofia e os saberes estruturalistas. Se, conforme o postulado instaurador de Peirce - “o significado de um signo é um outro signo” - , a proliferação incalculável dos signos, com a segunda revolução industrial - a automação-, promoveu uma circularidade sígnica jamais vista, crescente com a tecnologia avassaladora.


Considerada como linguagem (e, também, como poética), a Arte torna-se o campo privilegiado da multiplicação e da multiplicidade de códigos, operando um milagre semiótico. Dessarte, cria-se uma nova consciência de linguagem, que obriga a contínuos cotejos entre os códigos, o que constitui contínuas operações intersemióticas. No ato criativo, a visada metalingüística conduz a processos de metalinguagem analógica; os processos internos ao ato criador conduzem à natureza do signo ( “Signo”, segundo Peirce, é algo que substitui algo, para alguém, em certa medida e para certos efeitos, em certo lugar).


Em certa cena do belo E la nave va..., do genial Federico Fellini, a princesa cega Lherimia, protagonizada pela célebre alemã Pina Bausch, descreve as cores das vozes; naquele navio fúnebre - alegoria arquetípica da vida e de suas misteriosas vicissitudes - está morta a cantora de ópera, mas viva continua a Arte; encenando a superposição das percepções, o cineasta italiano aponta a inexistência de fronteiras entre as linguagens artísticas, aquilo que, já no século XIX, Rimbaud, gênio adolescente da Arte, denominara de “a alquimia dos sentidos”. Nasce daí a instigante noção de sinestesia que resulta, segundo Gilberto Mendonça Teles, da “idéia de uma identidade superior entre as diferentes linguagens artísticas”, na medida em que há uma transmutação de impressões entre os sentidos. Outra base da sinestesia pode ser buscada no delírio ou revêrie verlainiana, que proporciona uma evasão do mesquinho mundo real para mundos do sonho e da beleza” e , nesse sentido, dirá, belamente, Fernando Pessoa: “de eterno e belo há apenas o sonho”. Aqui radica uma fidedigna fonte da poética do Surrealismo, descendente direto do Simbolismo do Ottocento, estética fundada, igualmente, no famosíssimo poema de Baudelaire - Correspondances:


La Nature est un temple où de vivants piliers

Laissent parfois sortir de confuses paroles:

L’homme y passe à travers des forêts de symboles

Qui l’observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent

Dans une ténébreuse et profonde unité,

Vaste comme la nuit et comme la clarté,

Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Il est des parfums frais comme des chairs dénfants,

Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,

- Et d’autres, corrompus, riches et triomphants,

Ayant l’expsansion des choses infinies,

Comme l’ambre, le musc, le benjoin et l’encens,

Qui chantent les transports de l’esprit et des sens.


Para Ivan Junqueira, poeta e tradutor, Baudelaire, realiza, nesse célebre soneto, uma representação alegórica do mundo, que “lhe ofereça um refúgio contra a realidade da existência separada, que lhe seja capaz de fornecer as armas para o combate que se trava no plano humano ou, se se prefere, no plano poético”. Outra leitura para os signos de Baudelaire, poète-cygne, entende que Nature representa a nova Paris, cuja “floresta de símbolos” são os boulevards, emblema da modernidade urbana e por onde o poeta flâneur vai erigindo sua poética e estruturando, pela intersemiose, seus poemas:


Paris change! mais rien dans ma mélancolie

N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,

Vieux faubourgs, tout pour moi dévient allégorie,

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.


A leitura alegórica da poesia baudelairiana, fundadora da modernidade literária, propicia, de maneira instigante, uma compreensão da intersemiose, que confirma o enunciado do laureado escritor português José Saramago, segundo o qual se estabelecem, na linguagem, nexos, relações, associações entre tudo e tudo . Será, portanto, infinito o processo da produção de sentido.